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sábado, 21 de maio de 2011

Dion Leno

Ilustre Ilustração: Sakuro Sama


Era uma tarde ensolarada. Leia-se quente, escaldante e ofuscante. Não me lembro para onde íamos, mas lembro que tínhamos um violão e esperávamos alguém, de modo que paramos na renomada padaria que fica na última esquina do nosso bairro, próximo à parada de ônibus, a fim de aproveitar a sombra e a escadaria para nos sentar. Com os violões ensacados, tudo o que desejávamos nesse momento era um bom refresco.
Como sempre acontece nessas ocasiões, eis que aparece um velhinho, um típico velhinho bêbado e vagal, com chinelo sujo, bermudinha ordinária acima dos joelhos, camisa rota de campanha ou de empresa, cabelo mal cortado e a barba malfeita, além do andar cambaleante e da magreza notável. Apesar de todas essas características típicas, havia algo na fisionomia desse senhor que me parecia muito, muito familiar. Além de um certo sotaque não identificável... ou será que era a bebida?
Com uma certa dificuldade para falar sua fala embolada, o bebinho disse:
- o, cs nm qumrfir?
- ?
- Cês não qué um refri?
Queríamos. Sabíamos o que isso queria dizer. Em nossas andanças, aprendemos que jovens garotos munidos de violão sempre poderão contar com a generosidade de velhos bebinhos, de forma que não estranhamos a oferta. Também sabíamos o que viria a seguir: uma bela sessão de sertanejo, modas e Amado Batista. Para nossa sorte, já estávamos preparados pra esse tipo de situação, e tínhamos um belo repertório de breganejos e afins.
Quando o velho saiu de dentro da padaria com uma bela Coca-Cola de dois litros e meio, já estávamos com as violas desensacadas e água na boca. Nunca bebemos uma coca tão apetitosa na nossa vida, ou já. Aquele tipo de Coca que você saboreia nos calores mais infernais.
- Ou...
Preparar.
- ... toca...
Apontar
- ...um pinkflóid aí pa nois!
?
Pink Floyd? Talvez não fosse um bebinho forrozeiro como imaginamos. Mas não queria dizer muita coisa. Quantos velhinhos bêbados não curtem Wish You Where Here? Principalmente os que tocam violão. É o mesmo fenômeno de Zé Ramalho e Raul Seixas, que se fazem presentes desde bares até festas de partidos e sindicatos, em shows de rock ou festas agrícolas. Além disso, Wish You Are Here é uma daquelas músicas que todo mundo aprende quando começa a tocar violão, junto com faroeste caboclo e  More Than Words, etc. Foi justamente ela que tocamos. Não sabíamos cantar, mais embromamos.
- Agora, tca um... toc'um... um élvis i pa nois, vai! - disse ele estralando o dedo indicador com o médio, como faz esse tipo de gente.
Raylander se animou, porque ele amava Elvis. Mandou Pretty Woman, uma das suas preferidas.
O bebinho replicou:
- ssa músca não é do évisz ms ta de boa. Agora manda um black sabbath!
Aí nós nos entreolhamos. Elvis? normal. Pink Floyd? Vá lá... Mas... Black Sabbath?!
Não estávamos defronte para um bebinho comum. Não que se tratasse de algo impossível ou absurdo, mas não é todo dia que você encontra um bebinho em estado tão deplorável que curte Black Sabbath!
Raylander sabia tocar Iron Man, como sempre. Normal. Eu mandei Paranoid e N.I.B.
Mas o que arrepiaria mesmo seria o que viria a seguir.
- Manda um...
- ...
- Manda um...
- ?
- Manda um bitous pra nois aí, por favor. Se quiser pde pegar outra coca.
Nós nos entreolhamos mais uma vez. Por vários motivos. Pela estranheza do pedido. Porque justamente no caminho da vinda estávamos discutindo se, afinal, John Lennon havia ou não morrido. E porque justamente nesse dia, um pouco mais cedo, eu havia ensinado Raylander a tocar Imagine.
- É contigo, Ray. Mostre o que aprendeu.
Ray então fez soar com maestria a música Imagine das cordas do seu violão chamado Big George, enquanto eu cantava com não tanta maestria assim.
Enquanto cantávamos, os amigos que esperávamos chegaram, então nos despedimos e nos apresentamos ao velho.
E o senhor, como se chama? - dissemos enquanto ela já estava indo e nós também.
- Przer, meu nome é John Lennon.

***

- ?




Esta de Rick Caldeira
   



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